Hackers: Piratas de Computador (Ian Softley, MGM Studios, 1995)
28/11/2024
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Existem histórias que são atemporais; narrativas que, independentemente do quão antigas são, podem ser apreciadas por pessoas de qualquer época, sob qualquer circunstância. Muitas destas tornam-se tão memoráveis assim por puro acidente, mas geralmente há uma receita de qualidade seguida na criação de uma obra que acaba elevando-a, eventualmente, a tal status: personagens memoráveis e bem-caracterizados, um universo envolvente, uma cronologia concisa. Mas você já parou para perceber que atemporal não tem oposto? Baseado nas qualidades que tornam uma obra atemporal, podemos chegar à conclusão de que obras que são o oposto de atemporais são aquelas que não marcam a memória de quem as consome, não impactam sua vida, não fazem pensar sobre o processo criativo por trás delas e sobre os temas que apresentam. Todas estas características estão ligadas diretamente à qualidade de uma produção, mas existem certas obras que são produções competentes, boas até, e memoráveis justamente por ancorarem-se fixamente às épocas em que foram lançadas/publicadas originalmente devido às histórias que contam, e que cuja maior qualidade é justamente seu estilo datado. Não existe um termo para denominar este tipo de obra, mas se existisse, ele certamente poderia ser aplicado a Hackers: Piratas de Computador.
Hackers é uma dramédia adolescente com elementos de techno-thriller que transita entre o bom e o ruim, o brega e o bem-feito, o risível e o impactante de uma maneira que poucas outras produções de Hollywood conseguem. É um filme visivelmente feito com muito carinho e entusiasmo, e é justamente este entusiasmo pela arte do cinema, pelos renegados da sociedade e pelos avanços tecnológicos da metade da década de 90 - época em que foi lançado - que o tornam o espetáculo memorável e lindamente espalhafatoso que ele é. Sua abertura já explicita o tom que adotará ao longo dos seus 107 minutos de duração, e tudo que segue depois dela forma uma montanha-russa de absurdices que divertem o espectador - que acaba sendo pego de surpresa quando, ao tratar do amor adolescente entre dois de seus protagonistas, o filme revela sua face emocional e sensível.
O protagonista principal de Hackers é Dade Murphy (Jonny Lee Miller, em seu primeiro papel), jovem que, aos onze anos de idade, foi condenado pelo crime de invadir uma rede de mil quinhentos e sete computadores vitais para a economia dos EUA. Por sete longos anos, Dade foi proibido de usar computadores ou telefones como punição pelo seu crime, mas agora com dezoito anos de idade e morando, com sua mãe divorciada, em Nova Iorque, o hacker anteriormente conhecido como Zer0 Cool retorna à world wide web sob o novo codinome de Crash Override, e logo se enturma com o grupo de piratas de computador de sua escola - um quarteto de amigos que recusam-se a encaixar nas normas da sociedade, mas que encaixam um com outro do seu próprio jeito alternativo. Tudo corre bem até que Joey (Jesse Bradford), o mais jovem e inocente do grupo de amigos de Dade, invade o supercomputador do Conglomerado Ellingston e baixa, sem querer, parte de um worm implantado em seu sistema pelo próprio líder do departamento de cibersegurança da empresa, um hacker sem escrúpulos que posa de profissional da área de TI a fim de enriquecer rapidamente e viver a vida boa ao custo de seus “clientes”.
Eugene Belford (Fisher Stevens), conhecido como “O Praga” no submundo da internet, usa deste worm para desviar parte dos lucros do conglomerado para sua própria conta bancária, o que torna o roubo de um fragmento de seu código um risco para seu estilo de vida abastado, pois o hacker que agora o tem em mãos poderia vazá-lo na internet e, assim, expor todo o esquema nefasto de corrupção o qual ele abastece. A fim de garantir a assistência do Conglomerado Ellingston e do Serviço Secreto dos EUA em sua caçada pessoal, Belford infecta a rede da empresa com um vírus de sua autoria que ameaça afundar toda a frota de navios-petroleiros da mesma, aproveitando do anonimato garantido pela internet para direcionar a culpa pelo ciberataque ao codinome de Joey. Preocupados com o tamanho do impacto ambiental que tal desastre teria e os escândalos aos quais ele certamente levaria, o conglomerado e o Serviço Secreto caem na mentira de Belford, o que põe Dade e seus amigos na mira das autoridades - ao mesmo tempo em que um intenso romance adolescente floresce entre nosso protagonista principal e Kate Libby (a belíssima, talentosa e carismática Angelina Jolie, em seu primeiro grande papel), a “garota popular” da escola, que, para a surpresa de Dade, também é uma hacker talentosa, conhecida na rede como Acid Burn.
Embora a sinopse de Hackers o faça soar como um techno-thriller padrão, todos os outros elementos do filme colaboram entre si para torná-lo uma obra de arte única, que como seus protagonistas, recusa a encaixar-se em qualquer definição simples. A química entre Dade, Joey, Lord Nikon (Laurence Mason) e Cereal Killer (Matthew Lillard) preenche as muitas lacunas deixadas pela caracterização rasa de cada um deles com uma energia contagiante e surpreendentemente real, que consegue capturar perfeitamente, através da excelente performance de todos os atores envolvidos, a maneira em que adolescentes da sua idade interagem e relacionam-se um com outro. Estes não são os hackers da vida real, que trabalham nos cubículos de grande empresas, procurando brechas em seus sistemas de segurança a fim de corrigi-los, nem os hackers ficcionais com os quais somos mais familiares, que derrubam redes corporativas como forma de fazer justiça com as próprias mãos (pelo menos não de início), mas sim rebeldes sem causa, que fazem o que fazem por nenhum motivo além do entretenimento pessoal ao longo de longas noitadas regadas a bebidas energéticas baratas e fast food.
Essa energia rebelde e irreverente está presente também no mundo que nossos protagonistas habitam, cujos pontos focais são a rave Cyberdelia, a sala que abriga o supercomputador do Conglomerado Ellingston e o estúdio improvisado a partir do qual os mestres hackers Razor e Blade transmitem seu programa de televisão dedicado ao uso alternativo de tecnologia. Estes três ambientes não só servem de palco para o desenvolvimento narrativo de Hackers, como também informam toda a estética do filme - do figurino de seus personagens, aos efeitos especiais que ele utiliza, passando pela sua excelente trilha sonora. Essa última em particular é um intoxicante coquetel que tem, em sua composição, alguns dos maiores hits da música eletrônica da década de 90, compostas e gravadas por grandes nomes do meio como Orbital, Massive Attack, The Prodigy (que em dois anos lançaria seu revolucionário The Fat of The Land, álbum considerado marco na história não só da música eletrônica, como também do punk, do rap e do metal), Leftfield e Underworld; grupos e artistas britânicos cuja influência na cena alternativa o filme ajudou a exportar para o Novo Mundo. Os efeitos especiais apresentados ao longo da obra, criados, a despeito dos temas de narrativa, usando apenas ilusões de ótica e effect shots tradicionais, são também informados pelas estéticas da cultura underground da época e seu resgate da psicodelia anarco-hippie dos anos 60 e 70, e os figurinos de todos os personagens apresentados em cena - protagonistas ou não - não poderia ser mais representativo da época.
A espinha emocional de Hackers: Piratas de Computador é o já citado romance adolescente entre Dade Murphy/Crash Override e Kate Libby/Acid Burn, que se desenvolve e floresce - de um modo muito fiel à beleza associada à expressão - ao longo de toda sua 1h45 de duração. Num filme efervescente e enérgico como Piratas de Computador, em que a rapidez da montagem e a agilidade das cenas de diálogo pode assustar e afastar espectadores modernos não acostumados com a linguagem e as estéticas da época em que foi lançado, o relacionamento entre os personagens de Lee Miller e Jolie surpreende por sua naturalidade e ternura. De início, é a dinâmica meninos vs. meninas típica dos filmes adolescentes que dita as interações entre os dois, mas conforme Dade vai se adentrando no mundo da pirataria online e pondo sua pacata vida pessoal cada vez mais em risco, ele vai descobrindo que as distâncias que têm de sua rival não são tão grandes assim, e que sua vida é objeto de almejo dela e vice-versa - o que faz do amor que eventualmente desenvolve por ela, a garota mais popular da escola, uma relação simbiótica num nível pouco visto em qualquer um dos gêneros em que Hackers se encaixa. As conclusões de certos fios narrativos ligados ao desenvolvimento desta trama - como o do relacionamento de Kate com seu ex-namorado e o de Dade com sua mãe - deixam muito a desejar, mas a decisão de amarrá-los tão bruscamente é justificada pela brevitude do filme e compensada pelos surpreendentes níveis de leviandade e picância - sim, picância - que estes trazem ao mesmo.
Quando foi lançado nos cinemas em 1995, Hackers foi recebido com críticas mornas e uma performance mediana nas bilheterias, lucrando no total pouco mais de um terço de seu orçamento de vinte milhões de dólares. A crítica especializada o enxergou como apenas mais um dos muitos filmes pipoca da temporada que apostava no elemento narrativo então inovador do uso da internet para tentar distinguir-se dos demais, enquanto que seu público-alvo, jovens que usavam da internet na vida real e mantinham-se antenados aos avanços tecnológicos da época, pôs-se a denegri-lo por sua representação fantasiosa da experiência de ser um pirata de computador quase que imediatamente após o lançamento de seu primeiro trailer - a despeito da inclusão de um especialista sobre o tema (não-creditado) em sua equipe de produção. Hoje em dia, é justamente uma parcela considerável dos últimos que consideram Hackers um clássico cult (ao ponto de exibições abertas do filme serem uma atração comum em hackathons e campus parties do mundo inteiro), e exatamente pelos motivos pelo qual ele foi tão criticado inicialmente! Conforme a comunicação pela internet e o uso diário de computadores cada vez mais potentes e portáteis foi se popularizando mundo afora, o estilo de vida vivido pelos protagonistas de Hackers: Piratas de Computador foi deixando de ser alternativo e se tornou comum, o que permitiu que sua criatividade em tornar cinematográfico o ato de navegar pelo submundo da internet fosse vista e apreciada por mais pessoas, mas fez também com que todo o zeitgeist que retrata em sua narrativa envelhecesse de um modo que poucas outras obras envelheceram - o que, para alguns, é um ponto positivo, e para outros, um negativo. O que é certo e definitivo, no entanto, é que Hackers é um filme extremamente divertido que alavancou a carreira de alguns dos maiores nomes do cinema contemporâneo e que cuja produção veio a se tornar uma boa memória para todos os envolvidos, e que nos lembra que, às vezes, até mesmo os filmes mais “pipoca” podem nos surpreender com sua criatividade e com a paixão investida em sua criação. Hack the Planet!