Fantastic Four vol. 1 #51 - "Esse Homem... Esse Monstro!" (Jack Kirby, Stan Lee e Joe Sinnott, 1966, Marvel Comics Group)
08/07/2024
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Aproveitando que já falamos, na crítica passada, da carreira do grande Jack Kirby, de suas epopeias mistico-cósmicas e do impacto que estas tiveram no mundo dos quadrinhos, vamos agora focar em um outro aspecto da obra d’O Rei dos Quadrinhos, uma mais low-profile e pessoal, que talvez seja a verdadeira razão pela qual ele carrega tal título; um personagem tão único e especial que estudiosos da Nona Arte concordam em enxergá-lo como o maior protagonista do Universo Marvel... Estou falando d’O Coisa, membro fundador do Quarteto Fantástico e avatar através do qual Kirby expressava seus sentimentos reais nas páginas das histórias fantásticas que escrevia e ilustrava, e que, após a morte de seu criador, tornou-se um memorial vivo à sua vida e obra.
Já na história de estreia do Quarteto Fantástico (em Fantastic Four #1, de 1961), O Coisa chama a atenção por subverter as expectativas dos leitores da época com sua aparência grotesca e o fato dele ser, ironicamente, o membro com os superpoderes mais insignificantes da equipe. Se Reed Richards é o líder do Quarteto, Susan Storm a presença feminina e seu irmão Johnny Storm o jovem energético, o que Benjamin Grimm é, além de piloto? De início, apenas um brutamontes que não tem muito o que oferecer à dinâmica da equipe, mas que cuja personalidade forte, aliada à sua amizade longeva com o Sr. Fantástico, serve de tijolo inicial para a construção de um personagem tridimensional e surpreendentemente real.
Stan Lee, lendário preenchedor-de-balões da Marvel, sempre dava aos personagens de Kirby vozes únicas, cheias de bordões, tiques e sotaques memoráveis, e para O Coisa ele deu, já em sua primeira aparição, a de um ordinary joe nova-iorquino, inspirada na maneira de falar do próprio Rei e de milhares de outros nativos dos bairros mais pobres da cidade que nunca dorme. Enquanto que Reed ostentava seu conhecimento científico em suas exclamações e Johnny adotava as gírias da juventude da época, O Coisa recorria a expressões comuns dos bairros judaicos de NYC e a referências à sua querida Tia Petûnia em suas interjeições, e foram estas que deram início à construção do personagem de Benjamin Grimm, que, ao longo do tempo, foi adquirindo muitos dos traços de seu criador - como sua participação na Segunda Guerra Mundial, sua relação complicada com o local onde nasceu (Grimm com a Rua Yancy, Kirby com a Rua Essex) e até mesmo sua ficha criminal. Avancemos agora para 1966: com cinco anos de edições mensais, crossovers e especiais anuais no retrovisor, a confiança de Jack Kirby em ter Grimm como seu avatar pessoal no Universo Marvel já estava firmada, então, aproveitando a conclusão de um épico que até hoje informa a imagem popular do Quarteto Fantástico na edição anterior, o Rei decidiu abrir-se para seus leitores fiéis em uma história que viria a se tornar uma das mais icônicas de todo o meio da arte sequencial.
Esse Homem… Esse Monstro! (This Man… This Monster!, no original em inglês) se passa logo após o primeiro embate do Quarteto Fantástico contra Galactus, narrado nas três edições anteriores. É uma tarde escura e chuvosa em Nova Iorque, e Reed Richards, o Sr. Fantástico, está enfurnado em seu laboratório no Edifício Baxter, trabalhando loucamente em uma maneira de impedir que Galactus - ou qualquer outro ser cósmico de seu nível - ameace a terra novamente. Ao seu lado está sua esposa, Susan “Sue” Storm, a Mulher Invisível, cujo irmão mais novo - Johnny Storm, o Tocha Humana - está fora da cidade, aprendendo a equilibrar sua fama e seus poderes com as responsabilidades que sua nova vida acadêmica traz. Benjamin Grimm… Bem, Benjamin Grimm está deprimido, vagando sem rumo pelas ruas da Big Apple, sentindo a chuva forte cair sobre sua pele rochosa. Veja bem: a Trilogia Galactus marcou a primeira aparição não só do vilão homônimo, como também a de seu mais famoso arauto, o Surfista Prateado, que logo se tornou o terceiro vértice de um triângulo amoroso envolvendo também Ben Grimm e Alicia Masters, escultora cega que tornou-se a cereja dos olhos d’O Coisa após o embate do Quarteto Fantástico contra o vilão Mestre-dos-Bonecos, seu pai. De todo o Quarteto, Ben foi o mais abalado psicologicamente pela sua transformação em super-humano, perdendo toda a pouca auto-estima que tinha ao ter sua beleza rústica sobrescrita pela aparência de um golem, mas o amor incondicional de Alicia - que, a despeito de sua cegueira, sabia que Benjamin era diferente dos demais, graças a seu tato superdesenvolvido - o levou a recuperá-la, ajudando o Amável Pedregulho de Olhos Azuis a aceitar, sem nenhuma dificuldade, seu status de herói e celebridade. Agora, com um ser mais belo, mais poderoso e, ainda por cima, mais estranho que ele ocupando o posto de novo beau de sua amada, todas as inseguranças d’O Coisa voltaram à tona com força total, e é nesse estado emocional abalado que o herói se encontra ao ter a ele oferecido, por um estranho, abrigo da chuva.
Em um momento histórico de falta de bom senso, Grimm aceita o convite do estranho de aparência peculiar (para não dizer feia) de abrigar-se em sua casa, e lá é recebido de braços abertos com uma toalha e um bule de café quente. É neste momento que chega à mente de um leitor astuto a realização de que nenhum cidadão são de Manhattan receberia uma celebridade assim, tão casualmente, em sua casa; justamente quando o estranho caridoso revela, através de uma sequência de falas expositivas - marca-registrada dos quadrinhos “escritos” por Stan Lee -, que haviam sim intenções sinistras por trás de seu convite inicial a’O Coisa: seu plano é roubar para si a aparência rochosa do Ídolo de Milhões e, com ela, infiltrar o Edifício Baxter a fim de dar um fim a Reed Richards, o Senhor Fantástico, cujas incontáveis conquistas científicas lhes dão muita inveja. Com a primeira etapa de seu esquema nefasto concluída, o impostor deixa sua casa e parte em direção ao Edifício… deixando desacordado no sofá de sua sala Benjamin Grimm, o homem - mas não O Coisa.
Quem conhece Jack Kirby apenas por suas obras de escopo épico pode se chocar, de início, com o caráter mais intimista de Esse Homem… Esse Monstro!, mas foi sobre a mistura cuidadosa de fantasia cósmica, ficção científica e realismo idealista, mas pé-no-chão que esta história apresenta que o sucesso do Universo Marvel se construiu. Consagrada pelo cinema, pela televisão e pelo rádio como A Cidade que Nunca Dorme, onde as mais diversas histórias de vida se desenvolvem e se cruzam, Nova Iorque serve aqui de pano de fundo perfeito para o estudo de personagem que Jack Kirby propõe, e que se mescla muito bem com as sempre excepcionais habilidades artísticas d’O Rei dos Quadrinhos. Embora não tão vibrante e colorida quanto em 2001: A Space Odyssey vol. 2, a arte de Kirby aqui é, como em todas as outras obras de sua autoria, primorosa ao extremo, repleta de personagens bem-definidos, rostos expressivos e poses dinâmicas cheias de emoção e energia. A página de abertura da história é uma das mais icônicas da carreira do artista e suas ilustrações das ruas e casas de Nova Iorque são charmosas e cativantes, com as máquinas inexplicáveis e paisagens cósmicas surreais que viriam a definir suas obras futuras ganhando destaque mais para a segunda metade da história, quando o Senhor Fantástico embarca, pela primeira vez em sua carreira, numa viagem à Zona Negativa - dimensão paralela esta que é introduzida ao leitor com a mais icônica das famosas colagens de Kirby.
A arte de Jack Kirby é complementada, na versão original da história, pelo excelente trabalho de finalização e pintura de Joe Sinnott, colaborador mais frequente d’O Rei neste departamento. Ver aqui as linhas fortes e as sombras profundas de Sinnott voltarem às aventuras do Quarteto após o breve período em que o trabalho mal-feito do polêmico Vince Colletta preencheu as histórias da Família Fundadora (entre elas a lendária Bedlam at the Baxter Building!, onde o duradouro matrimônio entre Reed Richards e Susan Storm foi firmado numa festa de arromba) é um grande alívio, com o incrível uso de cores e de jogos de luz e sombra do velho parceiro de Kirby tornando até os menores dos painéis em obras de arte memoráveis. Anos mais tarde, Esse Homem… Esse Monstro! viria a ser incluída como bônus na edição compilada da minissérie Quarteto Fantástico: Grand Design, com a mesma arte e layouts de página mas com um novo tratamento de cores por Ed Piskor (autor e ilustrador de Hip-Hop: Genealogia e X-Men: Grand Design), cujo estilo característico exagera as imperfeições inerentes ao meio dos quadrinhos de impressão em massa e, assim, amplifica a já forte humanidade que permeia toda a história.
Os personagens de Jack Kirby - até mesmo aqueles com motivos maiores, alguns diriam de viés ideológico, por trás de suas criações - são todos imperfeitos, pessoas comuns com problemas reais que se misturam por acidente com as epopeias cósmicas em que eles embarcam, e Esse Homem… Esse Monstro! é uma história sobre aceitar tais imperfeições; sobre reconhecer não só elas, mas também a importância das pessoas que te amam a despeito delas. Ao roubar a aparência, a voz e o jeito de falar d’O Coisa e infiltrar o Quarteto Fantástico - equipe esta que já é, a este ponto, a família adotiva do Amável Pedregulho de Olhos Azuis -, o antagonista da narrativa se descobre simultaneamente mais e menos humano do que pensava ser. Entrando inicialmente no Edifício Baxter com o objetivo de matar o Senhor Fantástico, ele se junta, por acidente, ao mesmo em sua viagem à Zona Negativa, e passa seu tempo lá refletindo sobre o que fez e pensou de errado na vida, sobre os preconceitos que tinha sobre o Quarteto e especificamente Reed Richards, reconhecendo, no fim das contas, que a única maneira de se redimir de todos os muitos erros de seu passado é sacrificar-se para salvar o homem que antes tanto odiava - e que agora via como uma pessoa muito melhor, mais digna e mais admirável que si. Ao fim da história, Reed aterrissa são e salvo em seu laboratório, chorando, junto de sua esposa, pelo sacrifício heróico de seu melhor amigo, até que o verdadeiro Benjamin Grimm volta à cena com sua aparência rochosa - talvez sua verdadeira aparência, agora que ele é O Coisa - de volta, transformando imediatamente o clima de luto da situação em um de alívio e alegria.
Não há muito o que se comentar sobre a conclusão genérica e muito forçada de Esse Homem… Esse Monstro!; já as reflexões propostas a caminho dela são fascinantes para a época e para o meio. Nossa aparência dita nosso jeito de ser, nossas amizades, nossos amores? O que faz alguém ser único? Qual o valor de alguém que sempre se valorizou demais? O que uma pessoa normal faria se, um dia, encontrasse-se completamente irreconhecível para as pessoas que mais ama - e até para si mesmo? E se todos seus preconceitos fossem desmentidos e derrubados de uma vez só? Ela conseguiria se redimir aos olhos de quem era o alvo destes, mesmo após carregá-los por uma vida inteira - e se sim, como? A maioria dessas perguntas difíceis são trazidas ao leitor pelas ações e pelo diálogo interno do antagonista da história, mas Ben Grimm, ao bater boca com seus companheiros de equipe e logo depois tentar resolver seus problemas com Alicia sob a crença equivocada de que o retorno de sua aparência humana a convenceria de seu valor como pessoa, também representa muitas delas - e sob ambos os personagens, escuta-se a voz autoral inconfundível do grande homem que os criou.
Não se pode dizer ao certo se Jack Kirby sofria das mesmas apreensões que os personagens que criava, mas pelo tom nas quais essas são apresentadas em Esse Homem… Esse Monstro! em particular, pode-se presumir que pelo menos as sobre aparências e o valor de um indivíduo passavam pela cabeça d’O Rei dos Quadrinhos. Judeu de fé e de etnia, veterano de guerra, pai de família e artista de quadrinhos, Kirby dava amplos motivos para que dedos fossem apontados e preconceitos direcionados a ele, a despeito de seu trabalho fenomenal no meio que um dia já foi o mais popular entre os jovens do Ocidente, mas que na época em que Esse Homem… Esse Monstro! saiu era visto como entretenimento descartável. Artistas que trabalham em entretenimento descartável são, realmente, artistas? Podem eles ser reconhecidos tanto dentro quanto fora de seu meio de atuação, mesmo quando este mal os credita? Podem as obras de um pupilo um dia superar as de seu mestre, em impacto, influência e qualidade? Estas são as perguntas que Jack Kirby parece fazer tanto ao leitor quanto a si mesmo ao longo da história, e que viriam a ser respondidas positivamente pela evolução da cultura pop ao longo dos quase sessenta anos que se passaram desde sua publicação original. Ilustradores, roteiristas, arte-finalistas, coloristas e letristas de quadrinhos são, sim, artistas, e nós, como sociedade, aprendemos isso graças em grande parte às obras de Jack Kirby.