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2001: A Space Odyssey vol. 2 (Jack Kirby, 1976-1977, Marvel Comics Group)

15/05/2024

2001: A Space Odyssey vol. 2 #1, 1976, Jack Kirby, Marvel Comics Group
2001: A Space Odyssey vol. 2 #1, 1976, Jack Kirby, Marvel Comics Group

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A década de 60 marcou o início da ascensão da ficção científica ao status de pilar central da cultura pop. O que era antes visto como um gênero de nicho - reservado exclusivamente a obras incrivelmente toscas (no cinema) ou incompreensivelmente densas (na literatura) - começou a ganhar o afeto da população graças ao sucesso de obras imersivas que instigavam a imaginação dos espectadores e desafiavam-os a questionar fatos antes enxergados como verdades imutáveis. Na televisão tivemos Star Trek, seriado que, ao atrair uma legião de fãs fervorosos com sua mistura única de faroeste, Shakespeare, crítica sociopolítica contemporânea e ficção científica tradicional, mudou para sempre a forma de se produzir e de se acompanhar séries de TV, e no cinema tivemos 2001: Uma Odisseia no Espaço, filme do visionário Stanley Kubrick que juntou a ficção científica realista de Arthur C. Clarke (seu co-roteirista) a um dos mais belos trabalhos de direção de fotografia, som, atuação, figurino, set design, efeitos especiais e iluminação da história do meio.

Mas antes de Uma Odisseia no Espaço, antes mesmo até de Star Trek, Túnel do Tempo e Perdidos no Espaço, um outro meio já estava expondo as virtudes da boa ficção científica às massas desinformadas: as revistas de histórias em quadrinhos. Após um breve lapso de popularidade nas décadas de quarenta e cinquenta, os comic books rejuvenesceram com a injeção de novas ideias mais autorais, contemporâneas e experimentais em suas narrativas, que graças a estas começaram a evoluir além dos simples conflitos entre mocinhos e bandidos que marcaram suas chamadas eras de ouro e de prata. Na vanguarda deste movimento de amadurecimento dos quadrinhos de super-herói estava Jack Kirby - nom de plume de Jacob Kurtzberg -, que com o apoio do excêntrico e carismático Stan Lee criou, em 1961, o Quarteto Fantástico: os primeiros heróis da Era Espacial.

A carreira de Jack Kirby no meio da arte sequencial não começou com a publicação de Fantastic Four #1 - vinte anos antes, ele e Joe Simon criaram juntos o personagem Capitão América para a Timely Comics -, mas foi a partir da chegada do Quarteto nas bancas dos EUA que o Rei dos Quadrinhos (como viria a ser conhecido) passou a ser o grande arquiteto do Universo Marvel como o conhecemos atualmente. O Poderoso Thor, o Incrível Hulk, os Impressionantes X-Men, o Pantera Negra, o Homem de Ferro - todos estes e muitos outros foram criados por Kirby ao longo de uma única década, em uma impressionante demonstração de energia criativa, habilidade artística e agilidade de produção nunca superada desde então. E o que torna todos estes heróis e seus respectivos vilões uma única unidade concisa (além do fato da maioria atuar na cidade de Nova Iorque)? Os elementos de ficção científica fortemente presentes nas histórias de cada um.

De fato, Kirby era um fã assumido de sci-fi, que, devido a mandatos editoriais e outros fatores, teve poucas oportunidades de trabalhar com o gênero em sua forma bruta, mais rebuscada e densa. Uma destas oportunidades veio em 1976, quando, ao retornar à Marvel Comics após um breve período de trabalho para sua Distinta Competidora (onde rejuvenesceu as aventuras de seu maior astro com a reinvenção de aliados clássicos e a criação de novos vilões épicos), foi dada a ele a tarefa de adaptar 2001: Uma Odisseia no Espaço para o meio dos quadrinhos. Oito anos já haviam se passado desde o lançamento do filme nos cinemas e mais nove se passariam antes de seu relançamento em VHS, então a demanda por uma maneira acessível de reviver aquele que já era visto como um dos melhores filmes da história do cinema era altíssima; tão alta que esta adaptação extremamente autoral da obra de Stanley Kubrick vendeu o suficiente para que a Marvel pusesse Kirby a trabalhar como criativo único (roteirista, ilustrador e editor) em uma série mensal derivada dela - e é esta o objeto da crítica de hoje.

A série mensal de 2001: Uma Odisseia no Espaço é uma das obras mais Jack Kirby que existem. Tudo pelo qual O Rei dos Quadrinhos é conhecido está presente em abundância aqui: os deuses-astronautas, os monstros colossais multicoloridos, a linguagem rebuscada nos diálogos dos personagens e na narração onisciente que os acompanha constantemente - esta última inclusive ocupando muito mais espaço nos quadrinhos que a arte do pai do Universo Marvel. Mas que arte, hein? Os visuais de Uma Odisseia no Espaço demonstram todo o potencial de Kirby no ápice de sua carreira - quando seu estilo característico já estava concretizado e consagrado -, chamando a atenção do leitor e cativando sua imaginação com personagens corpulentos e expressivos posados dinamicamente sobre belíssimos cenários cheios de detalhes e auras de energia terrena e/ou cósmica (representadas, como sempre, pelos icônicos kirby crackles). Não importa se o corpo sendo representado é masculino ou feminino, humano ou monstruoso, primitivo ou além da compreensão humana: Kirby o desenha heroicamente, enchendo toda pose que ele assume com o máximo de energia o possível e pondo-o para agir em paisagens tão vastas que se estendem além das páginas.

2001: A Space Odyssey vol. 2 #2, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group
Nos mundos fantásticos de Jack Kirby, homens e mulheres são iguais em direitos, força e estrutura corporal
(2001: A Space Odyssey vol. 2 #2, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group)

Toda esta exuberância verbal e visual contrasta imensamente com o minimalismo pelo qual o filme de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke é conhecido, mas este não é, de longe, o único aspecto em que as duas obras se diferem. De fato, o foco narrativo da série de Kirby é muito diferente do do filme de 1968, sendo mais fiel aos temas presentes na obra literária de Clarke do que a versão mais conhecida da história (que o próprio Clarke ajudou a desenvolver). Em seu filme, Stanley Kubrick, através de seu incrível roteiro e de suas exímias habilidades cinematográficas, nos faz pensar que Dave Bowman, Frank Poole e o supercomputador HAL-9000 são os protagonistas da narrativa - que sua jornada a Júpiter a bordo da espaçonave Discovery é digna de ser acompanhada -, quando na verdade a história de Uma Odisseia no Espaço é a história da humanidade em si, de sua evolução ao longo dos séculos até que, no então-longínquo ano de 2001, ela inicia sua ascensão a um novo plano de existência com a ajuda de extraterrestres misteriosos e seu Monólito. Em sua interpretação da obra de Kubrick, Jack Kirby promove este subtexto místico-astronômico ao status de narrativa principal, criando assim uma adaptação que é mais fiel, espiritualmente falando, ao livro de Clarke ao mesmo tempo que é extremamente familiar para quem já leu as obras d’O Rei dos Quadrinhos que compartilham dos mesmos temas, como A Saga do Quarto Mundo e Os Eternos.

2001: A Space Odyssey vol. 2 #3, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group
A paixão de Jack Kirby por grandes espaçonaves e viagens cósmicas - e seu exímio talento em desenhá-las - transborda das páginas da série de Uma Odisseia no Espaço
(2001: A Space Odyssey vol. 2 #3, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group)

O que mais diferencia a obra de Kirby de sua inspiração original, no entanto, é sua estrutura. Ela é inconsistente, passando por duas grandes mudanças ao longo de apenas dez edições, mas pode ser descrita como uma antologia de contos interconectados pelo tema do engatinhar humano rumo ao espaço e além e pela presença do Monólito como elemento narrativo e personagem principal em todas elas. As primeiras quatro edições todas acompanham seres humanos de diferentes eras da Pré-História antes de saltarem adiante para o Século XXI imaginado por Kubrick e Clarke, com as de número 3 e 4 constituindo a primeira história de duas partes da série. A segunda, que ocupa as duas edições seguintes, vê Kirby retornando aos dois gêneros com os quais seu nome é tipicamente associado - super-heróis e ficção científica - mas subverte expectativas ao apresentar as aventuras super-heróicas simuladas do protagonista como uma forma de escapismo ao qual ele dedica seu tempo numa tentativa fútil de fazer algo de sua vida. A Nova Iorque distópica que O Rei apresenta nesta história é um cenário fascinante e envolvente que remete tanto à Los Angeles cyber-noir de Blade Runner: O Caçador de Andróides (que viria a ser lançado seis anos após esta série) quanto ao seu próprio trabalho em OMAC, e portanto o abandono desta a favor de uma aventura espacial com extraterrestres bizarros, planetas distantes e uma donzela em fuga na segunda parte da narrativa seria decepcionante se o tom levemente sardônico do texto - com críticas pontuais aos tropos do gênero e à então-nascente fandom de quadrinhos de super-heróis - não tivesse sido mantido.

A edição #7 despede-se dos temas Clarkianos da obra ao acompanhar a jornada solitária de um ser humano ascendido (chamado aqui de New Seed - ou Nova Semente, em tradução literal) por um planeta devastado pela guerra, e na #8 temos uma reviravolta inesperada: o futurismo distante baseado em ciência real das edições passadas é substituído por uma estética “vinte minutos no futuro” mais fantasiosa, e a narrativa passa a ter como seu protagonista o Andróide X-51 - personagem mais conhecido, por fãs dos quadrinhos da Marvel, como Homem-Máquina (Machine Man, no original em inglês). Sim, as três últimas edições da série mensal de 2001: Uma Odisseia no Espaço são uma história de super-herói, e pior que isso: uma história de origem de super-herói. O inocente X-51 faz parte de uma linha de andróides de alta performance, e, ao contrário de seus irmãos de linha, foi criado como um filho humano pelo cientista excêntrico Abel Stack, o que o ajudou a desenvolver algo que nenhuma máquina jamais exibiu antes: o livre arbítrio. Com a destruição de todos os outros Andróides X por ordens do governo e o sacrifício do Dr. Stack, Aaron Stack - como foi batizado por seu “pai” Abel - se torna o último de sua raça, passando a lutar, sob o nome de Senhor Máquina (o nome pelo qual o personagem viria a ser mais conhecido concretizaria-se apenas em sua série homônima, publicada entre 1978 e 1981), em defesa do livre arbítrio de todos os seres ao mesmo tempo em que procura seu lugar numa sociedade que o vê como uma aberração a ser temida e caçada.

Por mais divertida e empolgante que esta primeira aventura do Homem-Máquina seja, o fato dela ser apenas o prólogo de uma nova história que ocupa as três últimas edições de uma série que até então concluía todas suas histórias e, que, além disso, não enquadrava-se exatamente em nenhum gênero literário é muito infeliz. No início da publicação de 2001: Uma Odisseia no Espaço, o grande Jack Kirby estava criando histórias deliciosamente concisas e ainda por cima trabalhando com o que gostava de trabalhar, exercitando suas exímias habilidades de escrita e ilustração sem nenhuma limitação criativa fora a de ter de conectar suas histórias, de alguma maneira, à de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick - dois artistas os quais o carrancudo, tímido e humilde Rei dos Quadrinhos claramente admirava. Já ao fim da série, a criatividade de Kirby encontra-se asfixiada sob o peso das demandas editoriais da Marvel, que sem sombra de dúvidas o fizeram criar o Homem-Máquina como um novo super-herói a ser adicionado ao então-já-extenso catálogo da editora - um personagem a mais em um elenco de dezenas de ícones.

2001: A Space Odyssey vol. 2 #9, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group
A maneira na qual os personagens se referem à Marvel na primeira história do Homem-Máquina dá a impressão de que as aventuras do personagem se passam em um mundo onde o elenco de personagens da editora habitam um universo ficcional, assim como na vida real. Infelizmente, esta ideia foi descartada rapidamente, e o personagem, integrado ao Universo Marvel padrão
(2001: A Space Odyssey vol. 2 #9, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group)

Infelizmente, esta era uma situação muito frequente na vida d’O Rei dos Quadrinhos, que, a despeito de ter criado, praticamente sozinho, um dos universos ficcionais mais famosos da cultura pop (e ter revolucionado também o da concorrência!), foi pouquíssimo reconhecido e respeitado em vida, morrendo aos setenta e seis anos de insuficiência cardíaca enquanto lutava, junto de outros ícones dos quadrinhos como Neal Adams, Jerry Siegel e Joe Shuster, pela possessão de e propriedade legal sobre suas ilustrações originais - prática que só viria a se tornar padrão na indústria muitos, muitos anos mais tarde. Graças aos Deuses Cósmicos que vivemos, hoje em dia, numa sociedade mais culta, que reconhece as histórias em quadrinhos como a forma cem por cento válida de expressão artística que sempre foram, e seus roteiristas e ilustradores - especialmente o grande Jack Kirby - como os maiores artistas populares dos séculos XX e XXI!

2001: A Space Odyssey vol. 2 #6, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group
(2001: A Space Odyssey vol. 2 #6, 1977, Jack Kirby, Marvel Comics Group)